Concebido como homenagem à experiência de freqüentar cinema de bairros nos Estados Unidos da década de 1970, “À Prova de Morte” foi lançado por lá como parte integrante de um projeto divertido e ousado. Intitulado “Grindhouse” e recheado com quatro trailers falsos, o filme de Tarantino fazia um combo com outro longa-metragem, do amigo Robert Rodriguez (“Planeta Terror”). A película de Tarantino encerrava a sessão dupla de 3h12. O fracasso nas bilheterias, com apenas US$ 24 milhões conquistados, fez a Miramax repensar a estratégia de lançamento das duas obras, separando-as em definitivo. “À Prova de Morte” chega sozinho ao mercado internacional, expandido com uma dezena de cenas inéditas que tornam a experiência de assisti-lo ainda mais deliciosa.
Em diversas entrevistas concedidas para promover o trabalho, Tarantino fez questão de repetir: “À Prova de Morte” não é uma brincadeira inconseqüente, mas um filme ao qual se dedicou 100% e cujo resultado final o deixou orgulhoso. Tais declarações eram uma estratégia de defesa contra detratores que, mesmo sem assistir à película, expressavam asco à idéia de que um diretor famoso se rebaixava a ponto de criar um mero filme de “horror dentro de um carro”. Bobagem: uma espiada retrospectiva na carreira de Tarantino deixa evidente que o namoro com subgêneros B, quase sempre considerados pelos críticos como escória cinematográfica, não é novidade para o diretor.
Filme a filme, e desde que estreou no ramo, Tarantino sempre se dedicou trabalhar com material recolhido do depósito de lixo do cinema mais próximo, reciclando-o segundo suas próprias leis e transformando esses detritos em algo original e consistente. Foi assim que o diretor reabilitou seguidamente o filme de gângster (“Cães de Aluguel”), a ficção policial barata (“Pulp Ficcion”), o blaxploitation (“Jackie Brown”), os faroestes espaguete e as aventuras de artes marciais (“Kill Bill”). Dentro da filmografia de Tarantino, é provável que “À Prova de Morte” tenha parentesco próximo com “Jackie Brown”, tanto pelo gênero escolhido quanto pela direção de arte, que tem cor, formas e cheiros oriundos dos anos 1970. Como de praxe, o maestro brinca com a platéia, inserindo referências abundantes aos seus trabalhos anteriores.
“À Prova de Morte” não seria um legítimo Tarantino caso se limitasse a reproduzir os clichês dos subgêneros escolhidos – a estratégia foi escolhida por Robert Rodriguez, e é precisamente por isso que “Planeta Terror”, apesar de divertido, não alcança o mesmo nível de excelência. O diretor que revolucionou o cinema com “Pulp Ficcion” é mais esperto do que o parceiro, e utiliza as convenções narrativas dos filmes B apenas como ponto de partida, subvertendo-as saudavelmente no decorrer da projeção. Atente ainda para a faceta “professor Tarantino”, que indica uma série de obras icônicas dos subgêneros para a porção da platéia interessada em conhecê-los melhor, fazendo os personagens (quase auto-conscientes desta condição ficcional) citarem e comentarem um monte deles: “Corrida Contra o Destino”, “Bullitt”, “60 Segundos” (“o original, não aquela bomba com Angelina Jolie”, diz um deles).
Curiosamente, a estrutura narrativa é a mais linear de todos os filmes do diretor, dispensando a já tradicional cronologia fragmentada que caracteriza todos os trabalhos anteriores dele. A história é estruturada em dois blocos semelhantes, separados por um intervalo cronológico de 14 meses. Por duas vezes, a câmera de Tarantino acompanha um dia de bate-papo na vida de quatro garotas, mostrando em seguida o encontro delas com um serial killer que mata usando um carro. Aliás, as duas incríveis seqüências nos automóveis, feitas quase sem auxílio de CGI (é por isso que uma das atrizes protagonistas, Zoe Bell, é dublê de verdade – você vai entender quando vir a longa e eletrizante cena que ela desafia as leis da gravidade), põem “À Prova de Morte” na seleta lista de filmes com grau máximo de realismo em cenas do gênero. É material à altura de “Bullitt”, “Operação França”, “Mad Max” e “Viver e Morrer em Los Angeles”.
É muito bom perceber, também, como Tarantino vem se tornando uma dos melhores cronistas da alma feminina entre os cineastas contemporâneos. Se nos primeiros filmes dele os diálogos entre personagens eram nitidamente masculinos, aos poucos isso foi mudando. Este é o terceiro filme seguido, se considerarmos os dois volumes de “Kill Bill” como um só longa, em que os protagonistas são mulheres. As garotas aqui conversam, agem e sentem como fêmeas, embora o ponto de vista do filme em si seja bem macho, como provam os enquadramentos que valorizam partes do corpo feminino tipicamente fetiches para o diretor (pés e bundas). Durante as maravilhosamente vívidas seqüências de bate-papo, Tarantino registra com muita fluência e espontaneidade o tipo de conversa descontraída que só rola entre mulheres. São momentos deliciosos, maravilhosos bate-papos cheios de completa leseira e descontração, que capta o senso agudo de amizade só possível de ver entre garotas. Papo de homem, diga-se de passagem, é algo que Tarantino já havia resgatado antes com a mesma perfeição (“Cães de Aluguel”, “Pulp Fiction”).
Estreando como diretor de fotografia, o cineasta ainda nos brinda com uma linda tomada de dez minutos ininterruptos, sem cortes, com a câmera acompanhando uma das conversas entre as meninas, em torno de uma mesa de bar. É o tipo de cena que a gente assiste com um sorriso largo na boca – se aquela conversa demorasse mais uma hora, a platéia assistiria a tudo, sem achar enfadonho. O papo é jovem, vívido, colorido, real, travado entre gente de carne e osso, gente que exala uma enorme vontade de viver e aproveitar a vida. É material perfeito para cinéfilos comprovarem, mais uma vez, que não existe cineasta tão bom neste planeta para escrever e filmar diálogos. A trilha sonora (Jack Nietzche, Pino Donnagio, Ennio Morricone) amplifica ainda mais a experiência vibrante da platéia, cobrindo tudo com um verniz pop que é cara de Tarantino. Melhorar a experiência só seria possível se desse para ver o filme num drive-in, em carro conversível.
Embora você provavelmente já tenha lido por aí que o protagonista de “À Prova de Morte” é um assassino serial chamado Dublê Mike (Kurt Russell, intencionalmente canastrão e por isso mesmo excelente), a verdade é que o maníaco, dono de um carro com ferragens reforçadas usado para matar meninas bonitas, tem pouco tempo de tela. A alma deste filme é feminina, e o único personagem macho com falas – além do próprio Tarantino, numa ponta curta e bem-humorada como barman – só aparece para estragar o prazer genuíno de ver as garotas tendo aquele tipo de diversão extravagante que só as mulheres conseguem ter. Nada que um final inesperado, ousado e muito cool não possa resolver, numa cena que homenageia com sadismo nostalgicamente perfeito o cinema de ação B dos anos 1970 (trechos de “Boogie Nights”, especificamente as cenas do seriado de detetive com o astro pornô Dirk Diggler brandindo um revólver de espoleta, vêm a mente). Nesta toada, “À Prova de Morte” chega ao fim e você já está louco para revê-lo. Há melhor sinal do que isso?
Por: Rodrigo Carreiro, do CINE REPORTER
Por: Rodrigo Carreiro, do CINE REPORTER
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